18/02/16
As cidades são complexas, planejadas e caóticas em todos os sentidos. Foi ancorado nessa percepção e impulsionado pela vontade de discutir formas de tornar esse caos planejado mais habitável e justo, respeitando a liberdade e a criatividade, que o arquiteto e urbanista Anthony Ling idealizou um dos espaços de discussão mais corajosos e interessantes do nosso universo digital, o Caos Planejado.
Motivado por suas próprias dúvidas e pela falta de reflexão sobre assuntos como legislação, economia, mercado imobiliário e moradia no universo acadêmico, ele queria (e conseguiu) dar voz aos grandes temas do urbanismo por meio de uma linguagem acessível, sem cair na armadilha da polarização política nem do viés ideológico – na medida do possível, como esclarece. “Sentia falta de um espaço de discussão focado nos problemas e soluções, sem enviesar pela política. O debate sobre urbanismo no Brasil é muito politizado e pouco produtivo”, diz. “Há sites que tratam de temas urbanos de um jeito interessante, mas que não têm linguagem acessível, e outros que têm linguagem acessível, mas que entram no debate muito claramente posicionados politicamente, o que eu acho ruim.”
Com coragem para cutucar feridas incômodas, como as várias faces da gentrificação, a sanha da elite paulistana para preservar seus jardins e conter as alterações na Lei de Zoneamento e as razões pelas quais o projeto de revitalização do Vale do Anhangabaú não deve ser prioridade para o prefeito Fernando Haddad, o Caos Planejado conquistou relevância, um volume de cliques consideráveis e um time respeitável de colunistas, formado por profissionais e pesquisadores do Brasil e do exterior. O próximo passo do arquiteto nascido em Porto Alegre e radicado em São Paulo há cinco anos, onde trabalhou em um dos mais importantes escritórios do país, o Isay Weinfeld Arquitetura, é tornar-se um empreendedor do setor de mobilidade.
Já está em fase de testes o primeiro filhote dessa empreitada. O projeto deve apontar novos rumos para a questão do deslocamento em uma cidade desafiadora como São Paulo. Trata-se de um sistema de transporte coletivo composto de rotas que podem ser desviadas em tempo real em função da demanda. O serviço deve ganhar as ruas ainda este ano.
Nesta entrevista, Anthony Ling fala sobre os caminhos para a mobilidade no Brasil e no mundo, critica as restrições excessivas à incorporação imobiliária, que resultam na falta de imóveis para atender à demanda da população, e de seu encanto por Nova York e Londres, cidades que, em sua visão, souberam crescer e se reinventar.
A mobilidade se tornou um desafio em escala mundial. Soluções para facilitar e humanizar os deslocamentos nas grandes cidades estão cada vez mais em pauta, inclusive em São Paulo. Como você avalia esse movimento?
O movimento é bom. A percepção de que o carro não é mais uma resposta é muito positiva, estamos tentando deixar para trás a mentalidade antiga de que o automóvel iria resolver todos os problemas e dar às pessoas toda a autonomia do mundo. Com isso, as cidades foram sendo desenhadas não só para abrigar o carro, como para dar cada vez mais espaço a ele, com avenidas largas, túneis, viadutos. O mais maluco é que, quanto mais se aumenta essa vazão, pior fica todo o resto.
É difícil virar o jogo depois de tanto tempo, por isso essa quebra de paradigma que estamos vendo em São Paulo é muito interessante, até porque chegamos ao limite. Se todos os paulistanos decidirem sair de casa de carro ao mesmo tempo, não haverá espaço para todo mundo.
Apesar das medidas que vêm sendo adotadas, ainda falta muito para termos uma mobilidade satisfatória. No caso de São Paulo, que soluções poderiam ser implantadas para reverter esse quadro no curto ou médio prazo?
Há muitos mecanismos que já estão sendo discutidos, inclusive a taxa de congestão. O nome feio para isso é pedágio urbano. Apesar de já termos impostos sobre combustível, IPVA e rodízio, entre outras taxas, ainda não temos nenhum instrumento atrelado ao uso da rua, o que gera um uso pouco eficiente do espaço público e não estimula as pessoas a abrirem mão do carro. Em economia, é o que se chama de tragédia dos comuns, ou seja, um benefício para poucos com um custo social para muitos. Neste caso, significa que todos pagam a conta de quem anda de carro. E se prensarmos que um carro é normalmente ocupado por apenas uma pessoa, esse custo social é mais alto ainda. Isso sem contar quem deixa o carro estacionado na rua sem pagar nada, usando o espaço público de forma privada.
É preciso criar mecanismos para regular a demanda por espaço viário. As iniciativas mais avançadas do gênero foram implantadas em Cingapura e Estocolmo, com a instalação de pedágios automatizados em várias regiões dessas cidades: passou, pagou. Em Cingapura, a rede é muito extensa, quanto mais a pessoa anda, mais ela paga. Em Estocolmo, funciona mais para acessar a região central. Em Londres, também foi adotado um sistema semelhante mais recentemente, mas de uma forma não tão sofisticada como em Cingapura.
Considerando que a carga tributária do Brasil é das mais altas do mundo, como você ressaltou, não seria uma solução muito polêmica?
Do ponto de vista político, é uma solução muito difícil de ser adotada, embora seja tecnicamente muito boa. As pessoas basicamente evoluíram para se achar no direito de ter a rua para o seu carro, é um pensamento enraizado, mesmo sendo a pior forma de usar o espaço público. As pessoas acham um absurdo ter que pagar para estacionar o carro na rua. Vários urbanistas, aliás, defendem que nenhum espaço público deveria ser usado para guardar um bem particular como o carro.
A meu ver, a grande vantagem do espaço público é a possibilidade de fluidez, de ser um lugar onde as pessoas se encontram, coisas acontecem, há praças e diferentes alternativas de ocupação. Usar o espaço público para uma finalidade estática como estacionar automóveis é abrir mão do potencial que esse espaço tem para outros usos.
Por outro lado, a questão dos impostos no Brasil já é tão pesada que a discussão de alternativas como a taxa de congestão será sempre difícil. As pessoas vão argumentar que já pagam IPVA, impostos sobre os combustíveis etc. Além disso, tem a questão das esferas de poder, o IPVA é estadual, esse pedágio seria municipal, seria um desafio alinhar isso entre essas diferentes instâncias, mas é um caminho que está sendo estudado. Quase 100% dos técnicos em transporte defendem essa alternativa. O grande desafio é o poder público conseguir vender essa ideia de uma forma que seja socialmente aceita.
Falando agora sobre o que já está sendo posto em prática, como você avalia a expansão das ciclovias na cidade?
Ainda é cedo para avaliar, mas eu normalmente gosto de ciclovia. É uma solução barata – quer dizer, tem gente que acha cara, mas comparada a qualquer outra, é a mais barata que existe –, mas precisa haver uma rede para ser usada em maior escala. É um processo gradual, não dá para olhar a situação hoje e dizer deu errado. As pessoas levam um tempo para aderir, perder o medo. É quase como uma nova tecnologia, sempre tem os primeiros, aqueles que já estavam andando de bicicleta no meio trânsito, mas até isso ser incorporado pela maioria da população leva tempo.
O fato é que, quanto maior for o número ciclistas nas ruas, menor será a taxa de acidentes. Um ciclista pedalando sozinho na marginal tem muito mais chances de ser atropelado, ninguém vai ver esse cara. O negócio é colocar as pessoas na rua para elas irem perdendo o medo e se transformando em um contingente significativo, esse é o caminho para os ciclistas serem respeitados. Eu comecei a andar de bicicleta em São Paulo um pouco nessa onda.
A grande vantagem da gestão atual é a quebra de paradigmas. Não sei se há grandes acertos, mas acho que não dá para negar que é uma mudança importantíssima e que está servindo de exemplo para outras cidades, que talvez venham a copiar o que está sendo feito aqui, mas que abre espaço para a discussão e a percepção de que tem muita gente gostando.
Como o aumento das ciclovias pode impactar o hábito dos paulistanos?
Com acontece com outras soluções, a mudança é sentida mais rapidamente nas regiões mais centrais e mais densas, porque o fato de as coisas estarem próximas favorece os deslocamentos de bicicleta, é uma realidade. Quando saio de bicicleta hoje, percebo que tem muito mais gente pedalando. É difícil ter essa percepção quando estamos de carro. A ciclovia da Faria Lima, que eu uso muito, é cheia e, muitas vezes, é o jeito mais rápido de ir do Itaim Bibi a Pinheiros.
Mas ainda é uma experiência difícil, não é para qualquer um, é preciso ter coragem, há muitas avenidas ruins, os carros vão te desrespeitar. Os ciclistas também têm que aprender como se portar, não é só andar na mão certa, porque tem muita gente que ainda anda na contramão, mas também evitar calçadas e respeitar a sinalização.
Mas, com certeza, o número de ciclistas em São Paulo será cada vez maior, por isso é preciso ter uma rede para ter mais pessoas usando e mais gente usando para que essa rede seja expandida e melhorada.
Quais são os caminhos para tornar a vida nesse caos planejado que são as cidades mais viáveis?
Eu vejo muito pelo viés da oferta e da demanda. Tem muita gente querendo morar no mesmo lugar ao mesmo tempo. Eu tendo a ver as cidades como organismos que naturalmente respondem a isso com mais construções. Se deixarmos as cidades mais livres, elas vão responder dessa forma, o adensamento é uma resposta à demanda por espaço. Essa é a natureza das cidades, as pessoas se juntam para trocar, trabalhar, interagir. A cidade tem esse poder de atração, à medida que mais pessoas chegam, vão surgindo mais construções para abrigá-las.
O problema é que existe uma resistência grande a esse movimento, quase uma negação da cidade. As pessoas vêm para a cidade para viver as oportunidades que ela oferece, mas não querem conviver com os problemas e acham que a cidade é algo ruim.
É difícil dizer o que causa essa percepção, talvez seja até uma questão biológica do ser humano. O fato é que, para preservar seu status quo, as pessoas tentam impedir que mais desenvolvimento aconteça próximo de onde elas moram, o que acaba excluindo muita gente, principalmente quem tem renda mais baixa, tanto que hoje o que cresce nas grandes cidades são a periferia e as zonas metropolitanas. E não é por uma questão de esgotamento de espaço nas regiões centrais, ainda há muita área disponível, com bairros de baixíssima densidade e outros que já são densos, mas que poderiam ser ainda mais.
O Caos Planejado tem debatido muito a questão da resistência da elite ao adensamento, especialmente em bairros nobres de São Paulo. De que forma essa equação poderia ser mais bem equacionada?
O ideal seria que a própria cidade respondesse a essa demanda. Há uma visão muito disseminada de que, mesmo que se permita o aumento das construções nas zonas mais centrais, elas só vão atender a cidadãos de classe média e alta e não vão absorver a massa de pessoas que realmente precisa entrar nessas regiões.
Isso é verdade em parte. Quando um produto está novo – e imóvel é um produto – ele vale mais, está em melhores condições e, portanto, vai custar mais. Mas se tivermos uma produção imobiliária adequada em termos de volume, os imóveis que eram novos vão envelhecendo, se popularizando, e poderiam começar a absorver parte desse contingente periférico. O centro de São Paulo, por exemplo, já foi uma região nobre e hoje não é mais. A única coisa que aconteceu lá foi tempo.
Se São Paulo, ou qualquer outra cidade, tivesse uma produção mais natural de imóveis, que respondesse melhor à procura por espaço, ela poderia integrar essas pessoas gradualmente. Quando se estudam cidades onde há menos barreiras e limites à incorporação, vê-se menos déficit imobiliário, menos habitação informal e preços de imóveis mais acessíveis.
Ainda sobre a questão imobiliária, vocês publicaram uma reportagem esclarecedora sobre gentrificação, apontando alguns equívocos sobre o tema. Gostaria que você explicasse o que é gentrificação.
Gentrificação é o processo de substituição gradual de moradores mais pobres por moradores mais ricos, ou dispostos a pagar valores mais altos, causada pela melhoria das condições de um bairro. É um processo que ocorre no mundo todo por vários motivos, inclusive como consequência da regeneração dos bairros.
No centro de São Paulo, por exemplo, houve o envelhecimento dos imóveis, ou seja, um processo contrário ao da gentrificação e agora a região está passando pela gentrificação. É um movimento que sempre tem os dois lados. Toda pessoa que tem uma renda maior e está saindo do seu imóvel para ocupar o de alguém que vive em uma região mais valorizada está liberando seu imóvel para uma pessoa que talvez tenha uma renda menor que a dela.
A cidade está em constante transformação e isso envolve também a qualidade dos imóveis. O processo inverso também acontece, é conhecido como filtragem. Os imóveis vão filtrando seus moradores à medida que vão envelhecendo, é o inverso da gentrificação.
A grande chave é termos uma oferta imobiliária suficiente para atender à demanda. Em um contexto assim, as pessoas com mais recursos não precisariam migrar para um bairro em processo de valorização porque estariam sendo bem atendidas por uma oferta imobiliária nova, de qualidade, na região de que gostam. Ao mesmo tempo, poderia haver maior disponibilidade de imóveis que foram sendo filtrados ao longo do tempo para atender às pessoas com renda mais baixa.
A principal crítica à gentrificação é o fato da valorização imobiliária estabelecer um padrão de vida mais alto nos bairros, impedindo os antigos moradores de continuar frequentando a padaria, o supermercado, enfim expulsando-os de seu local de origem, não é isso?
Sim, é isso, e há duas partes prejudicadas nesse processo: os locatários e os compradores. Já os proprietários de imóveis são beneficiados pela valorização de seus bens. Para quem é locatário, a tendência é o valor do aluguel aumentar junto com os outros preços do bairro, fazendo com que ele tenha que se mudar para outro lugar, o que é um problema.
Mas o problema maior, a meu ver, é a falta de opções para atender essas pessoas. A natureza da cidade é dinâmica, não é legal controlar onde as pessoas devem morar, isso contraria o princípio básico da livre migração. A cidade existe, inclusive, porque pessoas se juntaram em determinado lugar para interagir. Vamos então partir do princípio de que é interessante que elas possam escolher onde morar e que a cidade tenha como responder a isso.
Talvez a situação esteja assim no Brasil porque há 20, 30 anos não se construiu a quantidade de imóveis suficiente para estabelecer uma oferta imobiliária que dê opções também para as pessoas com menor poder aquisitivo. É claro que existe o problema, mas eu acho difícil olhar só para um pedaço da fotografia e reduzir a discussão ao fato de as pessoas não conseguirem permanecer nos bairros ou ao aumento do preço dos aluguéis. É uma visão muito restrita e que provoca reações como a tentativa de controlar os preços dos aluguéis. Acho que o caminho não é esse. Para mim, o problema está acontecendo porque sempre houve tentativas de restringir o acesso aos imóveis e de conter o adensamento.
É impossível controlar o que as pessoas querem fazer, onde elas querem morar. Assim como é difícil dizer para as construtoras como elas devem construir. O mercado vai construir o que dá retorno e o que as pessoas estão consumindo, e não aquilo que o poder público está mandando fazer.
A lei da oferta e da demanda é mais poderosa que a caneta no papel. Essa é minha visão sobre gentrificação. Se observarmos apenas as consequências imediatas, é um problema, claro. Mas, analisando o contexto geral da cidade, é um processo que está na sua essência. O real problema é a falta de alternativa para as pessoas que saem de seus bairros.
Nas discussões sobre a vida em grandes cidades, tem-se falado muito sobre modelos colaborativos. Até que ponto essas experiências podem fazer a diferença?
Na minha avaliação, essa tendência surgiu porque a tecnologia permitiu. Várias tecnologias e modelos de negócio nos setores de transporte e hotelaria, por exemplo, foram criados como uma resposta à desconfiança, ou seja, as pessoas vão para lugares onde não conhecem ninguém e têm necessidade de saber se o transporte é confiável, quanto custa, onde podem dormir confortavelmente etc. A partir desses questionamentos, surgiu a necessidade de criar modelos de negócio em que um hotel luta para conquistar credibilidade, algo que diga ao consumidor: “Pode dormir aqui que não vão roubar seu rim durante a noite”.
Com a disseminação da internet e o aumento da conectividade, os estabelecimentos podem garantir uma credibilidade online pela avaliação dos usuários. Isso começou no setor de compras, com o eBay e o Mercado Livre dizendo que determinado vendedor é seguro, e evoluiu para modelos tão sofisticados como o do Airbnb, em que você se hospeda na casa de uma pessoa. Conheço pessoas que vivem de administrar imóveis pelo Airbnb, para elas, as estrelas são tudo, se perdem uma estrela, perdem a credibilidade.
A lógica é muito simples: em um universo de centenas de ofertas semelhantes, por qual delas as pessoas vão optar? Por aquela que for mais bem recomendada. As empresas estão reféns do consumidor. Hoje, ele tem poder de avaliação e voz, o que permitiu a criação de modelos mais colaborativos. De um lado, os consumidores têm o poder de avaliar e, de outro, uma pessoa que tenha um espaço ocioso em casa pode obter uma renda a partir disso usando uma ferramenta que antes não existia.
Essa tendência está migrando para o transporte, com o Uber e aplicativos como o Caronetas. Estou, inclusive, desenvolvendo uma empresa focada em transporte coletivo, com rotas que possam ser desviadas em tempo real para atender a múltiplos passageiros. Neste caso, a credibilidade do motorista está na avaliação dos passageiros, e quem está prestando o serviço, ou sendo um intermediário dele, pode controlar o nível do que é oferecido. É o começo do processo de pensar o transporte de forma personalizada, isso nunca aconteceu, era sempre uma questão de massa ou totalmente individualizada.
Você acredita que esses modelos vão se espalhar e se tornar mais sofisticados?
Com certeza. Nos Estados Unidos, há startups que oferecem modelos de transporte coletivo em que as pessoas sugerem as rotas e o sistema vai ajustando as paradas para onde tem mais gente. As rotas são desenhadas com base na demanda e, embora sejam fixas, vão sendo ajustadas de tempos em tempos. Como será isso em dez anos? Provavelmente, uma coisa maluca.
Há outras soluções interessantes, como os novos modelos de aluguel de carro entre motoristas. A pessoa se cadastra e deixa o carro disponível para aluguel em um fim de semana, por exemplo. É uma alternativa mais barata em relação ao aluguel comum e uma maneira de usar melhor algo que não esteja sendo 100% aproveitado.
A tendência agora é usar os recursos de forma mais eficiente. Se pegássemos todo o espaço ocioso em São Paulo, talvez desse para reduzir a cidade à metade. Nesse sentido, existe uma plataforma muito legal, o LiquidSpace, em que é possível encontrar e oferecer qualquer espaço de trabalho. Você pode anunciar um lugar numa mesa com wifi por algumas horas, por exemplo. Há empresas com salas inteiras vazias que poderiam gerenciar esse espaço de uma forma muito mais inteligente.
No texto, “A Morte dos Encontros”, você diz que “A acessibilidade do pedestre é muito mais importante do que as pessoas imaginam”. Fale um pouco sobre esse raciocínio.
A acessibilidade do pedestre é importante porque ele é a menor unidade de transporte que existe. Para pegar um ônibus ou metrô, é preciso caminhar até a parada ou estação. Mesmo quando estamos de bicicleta, é preciso andar para entrar e sair dos lugares. Em São Paulo, mais de 35% dos deslocamentos são feitos a pé, um número bastante significativo.
Quando se pensa em mais espaço para o carro, a acessibilidade do pedestre é prejudicada pelo como barulho, pela velocidade, pela dificuldade de atravessar a rua etc. Tudo isso afeta também outros modais de transporte. Por outro lado, se facilitamos a vida do pedestre, melhorando as calçadas, por exemplo, aumenta a possibilidade de as pessoas acessarem o transporte coletivo, porque percebem está mais fácil e seguro ir até a parada de ônibus.
A vida na rua está diretamente ligada ao incentivo para as pessoas estarem na rua. Edifícios de uso misto, opções de serviço nos bairros, tudo isso estimula o deslocamento a pé e o uso do transporte público. Quanto maior for o número de pessoas na rua, mais as pessoas vão se sentir à vontade para andar a pé e ocupar o espaço público. Em ruas vazias, a sensação de insegurança é maior.
Diversos fatores contribuem para a acessibilidade do pedestre e isso tem uma influência gigante no resultado geral da cidade. Quem anda só de carro pode não ter a dimensão do quão importante isso é, mas é fundamental.
Você acredita na requalificação da paisagem urbana com ações pontuais, mais focadas nas necessidades das pessoas?
Sim, com certeza. Os grandes projetos de revitalização costumam ser mal direcionados, mal geridos, custar o dobro do previsto, não ter os estudos técnicos necessários. Em geral, é a visão de algum político que não tem a dimensão real das necessidades das pessoas. Por isso, sempre que vejo um grande projeto de revitalização, é muito provável que eu seja contra.
O custo-benefício de ter projetos pontuais espalhados pela cidade é muito melhor, porque é possível ter mais controle da situação, uma gestão mais pontual e conhecimento local, que é muito importante para essas iniciativas darem certo. Os grandes projetos são quase como extraterrestres que aterrissam em uma região, pensados por pessoas que não têm relação alguma com aquele lugar. Além disso, muitos deles ainda têm uma visão higienista, em que a alternativa é sempre passar o trator e fazer de novo, sem considerar as pessoas que estão vivendo ali. Não existe a visão de que as coisas podem ser melhoradas progressivamente.
Isso foi muito comum na história do urbanismo brasileiro. As primeiras favelas no Rio de Janeiro surgiram assim. Havia os bairros de cortiço, que atendiam a pessoas de baixa renda, mas que, pelos registros da época, parecem muito melhores que as favelas, afinal eram casas de alvenaria, feitas por construtores profissionais à época, não eram autoconstruções. Foi assim até o Passos [Francisco Pereira Passos, prefeito do Rio entre 1902 e 1906] assumir a prefeitura e decidir colocar em prática um plano para deixar o Rio parecido com Paris. As fotos do projeto que removeu os cortiços – e que tinha como investidores algumas das pessoas mais ricas do país – são bizarras: uma rua atravessando um monte de casas, não tinha mais nada. Os antigos moradores simplesmente foram expulsos e começaram a formar as favelas. Assim, fomos determinando que a cidade só existiria para cidadãos de classe média para cima, quem não tinha condições estava fora.
O próprio urbanismo carregou essa visão até a metade do século 20. O projeto de Le Corbusier para Paris, por exemplo, era destruir a cidade inteira e construir blocos das unidades habitacionais pensadas por ele, algo semelhante a Brasília. Era utópico, mas era o ideal na visão dele. Em escalas diferentes, essa mentalidade permanece até hoje. O Rio de Janeiro está fazendo várias obras na Zona Portuária. Algumas são positivas, claro, como a retirada do Elevado Perimetral, que abriu espaço para outras coisas. Mas ver um museu do Calatrava que custou sei lá quantos milhões [Museu do Amanhã, projetado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava e que custou quase R$ 300 milhões] e olhar para o lado e ver uma favela gigante, não dá para não pensar que alguma coisa está muito errada, porque é dinheiro público. Quem não tem um olhar crítico gosta, vira cartão-postal. As pessoas acham legal morar numa cidade que tem um brinquedo gigante, caríssimo, mas eu sou muito cético em relação a esses grandes projetos.
Projetos menores conseguem chegar à escala das pessoas, essa é a grande diferença. O poder público não tem essa visão, ainda comungamos da filosofia de que quanto maior a obra, melhor para a cidade. Muitas vezes, bastaria simplesmente abrir espaço para as pessoas interferirem e terem liberdade para transformar seus bairros.
Cite uma cidade que seja inspiradora do ponto de vista dos temas sobre os quais falamos.
É difícil escolher. Há várias cidades que eu acho inspiradoras pelo modelo de urbanização, Nova York é uma delas. O interessante é que muito cedo se planejou a infraestrutura da cidade. Isso há mais de cem anos, então foi algo muito precário, o xadrez viário desenhado no papel, mas isso permitiu prever como a cidade cresceria e, ao mesmo tempo, deu liberdade para as pessoas construírem nos terrenos particulares.
Até o início do século passado, a legislação de Nova York era muito livre, não tinha definição de uso do solo, zoneamento, o potencial construtivo era imenso. E a cidade respondeu bem, até para absorver as ondas migratórias gigantes que recebeu. Tudo isso fez com que Nova York se desenvolvesse de uma forma orgânica e se tornasse uma cidade muito dinâmica.
Também gosto muito de Londres, é um lugar que teve um desenvolvimento muito espontâneo. Você está caminhando e vê um bloco de prédios parecidos e outro ao lado totalmente diferente. Aquilo é uma incorporação imobiliária de 200 anos atrás, com o aproveitamento máximo do terreno, no limite de altura possível. Era o projeto comercial da época e até hoje todo mundo gosta. Não tinha ninguém dizendo para não passar de determinada altura, construir no estilo xis, fazer uso misto. Há, inclusive, bairros inteiros em que a rua é o espaço que restou entre esses empreendimentos, o que faz com que tudo seja mais próximo e mais aconchegante. É uma cidade que soube se reinventar e conseguiu manter o antigo e o novo em harmonia.
Qual é a sua visão sobre a construção de cidades para pessoas?
O termo foi popularizado pelo arquiteto dinamarquês Jan Gehl, que repensou o planejamento de Copenhague buscando devolver os espaços púbicos às pessoas. O projeto transformou a cidade na capital mundial do ciclismo urbano e tirou muitos carros das ruas.
As cidades foram muito mal planejadas, o fluxo de tráfego foi resumido ao fluxo de carros. Quem anda de ônibus, a pé, de bicicleta foi ignorado. Esse raciocínio afetou não só o urbanismo, mas também a arquitetura. Os prédios são desenhados para serem vistos de longe, a escala do pedestre não é considerada. Temos que parar de pensar as construções como monumentos e perceber como mudanças simples, como um café no térreo e uma calçada de qualidade, podem melhorar um empreendimento. O raciocínio é esse, vamos parar de pensar no grande, no carro, que é uma máquina, e vamos pensar em como as pessoas estão se relacionando entre si, com o espaço, ou seja, retomar a questão do usuário, como se diz na arquitetura.
Na sua visão, o que é morar com qualidade?
A resposta depende da realidade de cada um, mas acredito que um dos maiores desafios do Brasil nesse sentido é a segurança. É uma questão que afeta a todos. Falando por São Paulo, é uma cidade que te oferece muitas opções e muitas possibilidades de ter uma vida confortável, apesar dos problemas, mas a ideia de você estar em casa e saber que alguém pode invadir o seu espaço é muito maluca. No dia a dia, a gente bloqueia esses pensamentos, mas volta e meia, quando alguém que você conhece é assaltado, voltamos a pensar nisso.
Como eu trabalho em casa, meu desafio com deslocamento é menor que o da maioria da população, mas, para muitos dos paulistanos, viver com qualidade é morar perto do trabalho ou em um lugar de fácil acesso. Se você fizer essa pergunta em Xangai, as pessoas vão dizer que é ter uma boa qualidade do ar, porque a poluição lá é terrível, é preciso sair de casa de máscara. Conheci um cara do Quênia para quem o maior desafio era a poeira, porque as ruas lá são de terra. Grande parte das mortes na cidade dele estava relacionada ao fato de as pessoas respirarem poeira. Isso para dizer que o conceito de qualidade de vida vai sempre variar muito.
E qual é o seu ideal de cidade ou sua cidade ideal?
Do ponto de vista urbanístico, eu diria que não existe uma cidade ideal. Cada pessoa deve procurar a cidade que atenda às suas preferências. Por exemplo, fala-se muito sobre adensamento, eu não acho que todo mundo tenha que morar em um lugar denso, a pessoa deve fazer ou não essa escolha. Se ela quer morar em um lugar menos denso, provavelmente vai ter que morar mais longe do centro, onde há menos demanda pelo uso do solo, mas há quem prefira essa opção.
Eu gosto de cidades grandes. O fato de ter muita gente no mesmo lugar faz com que haja muita opção para tudo, eu prefiro estar num lugar que me dê essa liberdade. Em São Paulo, você pode sair para almoçar às onze da manhã num domingo e também às três da tarde. Eu me sinto bem em estar num lugar que me dê essas possibilidades. Minha paz eu encontro no meu apartamento, fecho a janela e aquela já é toda a paz de que eu preciso, é suficiente para mim.
Fonte: Blog Huma